23 de fev. de 2010

Reminiscências



Aquele homem leva uma vida de autômato. Não por estar aposentado, muito menos por ignorância ou estupidez. Por falta de direção e sentido. Ao contrário de quando era responsável pelo destino de milhares de pessoas no comando de uma aeronave. Morreu-lhe a mulher, de câncer, há pouco mais de um ano. Com ela compartilhou quarenta anos de vida.

Acabara de chegar em casa. Entrou na sala e lembrou-se do cachorro ausente. O animal de estimação o recebia com festa. 0 cão seguiu o destino da esposa, depois de meses sem abanar o rabo. Não suportou a perda. O homem sentiu-se envergonhado; O cachorro conviveu com a dona apenas dez anos e se entregou a uma prova de amor superior à dele. É assim que se sentia e jurou não procurar outro calor na ausência da mulher. O coração em turbulência não suportava a saudade. Viu, na estante da sala, a foto do único filho. Mora no exterior, visita o Brasil uma vez ao ano. No Natal. Seguiu o próprio rumo e também não pertence mais àquele homem.

Caminhou até a cozinha para beber água. Viu a gaiola num canto na área de serviço. Vazia. Desde o dia em que decidiu abrir a portinhola e deixar os canarinhos partirem. Para que o canto não lhe trouxesse lembranças. "Quê que ela tá fazendo aqui?", surpreendeu-se o homem. Ele ordenara a empregada a se livrar daquela cela solitária havia muito tempo.

Na prateleira de um dos quartos, viu os livros esquecidos. "Pra quê ler?" Só tinha prazer nas leituras ao lado da mulher. As histórias ganhavam vida. Ele na poltrona da sala, a companheira na cadeira de balanço, fazendo crochê. A cadeira se encontrava ali, paralítica. Movimentos apenas nas recordações. Viagens não têm mais sentido sem a mulher. Os pães não possuem o mesmo sabor. Nem o café. A cafeteira ainda é vermelha, as marcas do pó e do filtro de papel são as mesmas, mas o café passado pela empregada, há poucos meses naquela casa, jamais soube acompanhar o leite com dignidade. A esposa preparava todas as refeições. Para o homem, ninguém a substituirá.
por Adriano Macedo

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